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20 de novembro: com racismo, não há democracia

Os ventos democráticos parecem avançar pelo continente americano, trazendo respeito às diversidades e direitos humanos. Mas é preciso que não esqueçamos do genocídio orquestrado contra o povo negro

Publicado: 16 Novembro, 2020 - 14h34

Escrito por: Paulo Paim*

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Com quase 56% da sua população sendo negra, o Brasil ainda é um dos países mais racistas do mundo, onde, estatisticamente, as mulheres negras estão na base da pirâmide social. No dia 20 de novembro, celebramos a Consciência Negra, data de resistência e de conscientização para a população brasileira sobre o processo de colonização do país, da escravidão e dos seus reflexos.

O marco foi incluído no calendário escolar nacional em 2003 e, em 2011, foi instituído oficialmente pela lei federal de nº 12.519. A regulamentação, no entanto, não transformou a data em feriado e fica a critério de cada estado e cidade optar por adotá-la como tal. Dos 5.570 municípios brasileiros, menos de 15% consideram a data como feriado, de acordo com levantamento elaborado pelo jornal O Estado de S. Paulo, com base em dados apresentados em 2019 pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ainda assim, o dia é marcado por atividades culturais, debates e manifestações organizadas pelos movimentos negros em diferentes regiões do país.

A data foi fomentada, em meados da década de 1970 no meu estado, o Rio Grande do Sul, por militantes universitários negros como o poeta Oliveira Silveira, Vilmar Nunes, Ilmo da Silva e Antônio Carlos Côrtes, que questionavam o dia 13 de maio. Para eles, a abolição da escravatura não representava a liberdade dos negros escravizados, pois, depois da assinatura da Lei Áurea, a população negra não recebeu nenhum tipo de indenização ou reparação do Estado Brasileiro.

Assim, o dia 20 de novembro, em homenagem a Zumbi e sua luta histórica, seria mais apropriado para o movimento negro brasileiro. A data veio para fortalecer em nossas memórias esse período secular tão nefasto, que não podemos esquecer e jamais repetir.

Indígenas escravizados, povos africanos sequestrados e escravizados, crianças, mulheres e homens. Foram mais de 12,5 milhões de africanos sequestrados, em que 10,7 milhões conseguiram sobreviver a essa desumanidade e 1,8 milhão morreram na travessia do Atlântico. Corpos jogados ao mar alteravam os trajetos dos cardumes de tubarões, que começaram a seguir os navios negreiros.

O Brasil foi o último país das Américas a “abolir” a escravidão, e só o fez devido à forte pressão da Inglaterra. Em 1888, a falsa abolição da escravatura jogou a população negra às margens da sociedade, sem nenhum tipo de política pública.

Nessa época, os negros já eram maioria no país. O primeiro censo realizado no Brasil, em 1872, apontava que 80% da população brasileira era negra. No ano de 1911, decreta-se o Regulamento do Serviço de Povoamento, também chamado como decreto de clareamento. Nele, o Estado Brasileiro oferecia desde as passagens de vinda e terras até bolsa de estudos para os filhos dos imigrantes, sobretudo europeus.

O racismo estrutural é secular. É necessário conhecermos a nossa história e trabalharmos para que o presente seja diferente. E, infelizmente, os números nos mostram que há ainda muito a ser feito: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país; em 24 horas, 13 mulheres são mortas e a maioria delas são negras. Os sequestrados do passado são os encarcerados de hoje. No Brasil, 60% das prisões são provisórias e são os negros que estão lá. Mesmo com 56% da população brasileira sendo negra, quase não temos representação no parlamento. Quem estão nos subempregos e ainda no trabalho escravo? As religiões de matriz africana são alvos de 59% dos crimes de intolerância religiosa. Um trabalhador que ganha um salário mínimo paga o mesmo tributo que um milionário.

Muito foi feito para combater o crime de racismo, mas a sua capacidade de se fortalecer como um vírus letal ainda nos atinge incessantemente.

Conquistamos o Estatuto da Igualdade Racial, a maior norma orientativa para Promoção da Igualdade Racial, que, em 2020, celebrou os seus 10 anos. O estatuto é a bússola indicativa para várias políticas públicas como a Proposta de Emenda à Constituição de nº 33/2016, que cria o Fundo Nacional de Combate ao Racismo; o projeto de lei nº 2179/2020, que dispõe sobre a obrigação dos órgãos e instituições de saúde em promover o registro e cadastramento de dados relativos a marcadores étnico-raciais, idade, gênero, condição de deficiência e localização dos pacientes por eles atendidos em decorrência de infecção da covid-19. Ele foi aprovado no Senado e tramita na Câmara dos Deputados.  

Fui indicado pela Coalização Negra por Direitos – frente composta por mais de 150 entidades dos movimentos negros do Brasil – relator da sugestão legislativa nº 23 de 2020, que veda a conduta de agente público, fundada em preconceito de qualquer natureza, de raça, origem étnica, gênero, orientação sexual ou culto. Estamos dialogando com todos para tentar barrar o genocídio cometido pelo Estado aos corpos negros.

Neste ano de 2020, também conquistamos uma grande vitória junto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e ao STF (Supremo Tribunal Federal), com a aprovação da distribuição isonômica dos recursos do fundo eleitoral e do tempo de rádio e TV para as candidaturas negras. O tema só foi decidido após provocação da ONG Educafro, da participação de parlamentares do PT, como eu e a deputada federal Benedita da Silva, e do PSOL, que provocaram os dois tribunais.

Oxalá que essa distribuição igualitária realmente aconteça, pois muitas candidaturas estão denunciando irregularidades no cumprimento da nova regra pelos partidos. Que o TSE estimule a plena fiscalização dessas conquistas.

E gostaria de compartilhar com vocês uma grande alegria que tive por esses dias: o reconhecimento por ter sido agraciado com o Prêmio Mipad (Most Influential People of African Descent) e estar entre os 100 afrodescendentes mais influentes do mundo. O Mipad sempre ocorre após a abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas e o objetivo é homenagear artistas e cidadãos que se posicionam contra o racismo e lutam a favor do direito dos negros. Viva o nosso povo preto!

É incontestável que o mundo está mudando. Olhamos o passado recente onde Barack Obama foi eleito o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Depois dele, com a derrota de Hillary Clinton, tivemos uma onda negativa, mais à direita, em relação às políticas humanitárias. Agora, com a vitória de Joe Biden, uma nova perspectiva se avizinha, com ele assumindo a implementação de políticas de combate ao racismo e ao preconceito. Segundo Biden, a política de abordagem policial vai ser mudada. Isso demonstra que a garantia dos direitos humanos serão prioridade no seu governo. Importante destacar que a sua vice é Kamala Harris, a primeira mulher negra eleita a chegar a vice-presidência daquele país.

Os atos de violência contra o povo negro que aconteceram durante o governo Trump fez com que o voto afro-americano fosse decisivo na vitória de Biden e Kamala. Além do envolvimento de Obama nesta eleição, buscando a unidade das forças progressistas e humanistas.  

Assim, percebemos que os ventos da democracia avançam pelo continente americano, trazendo novos ares, respeito às diversidades e aos direitos humanos. Com a democracia, se corrigem os rumos, caminhos são reconstruídos e os olhos da esperança se alegram.

Digo mais uma vez: enquanto houver racismo, não haverá democracia. Sigamos todos juntos por um mundo de plena igualdade. Negros, brancos e indígenas podem e devem viver em harmonia, em fraternidade, solidariedade, terem oportunidades iguais e caminhar juntos com politicas humanitárias e libertárias. Essa é a verdadeira democracia que eu creio, sem ela é a barbárie.

*Paulo Paim é senador pelo Partido dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul e presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado

Fonte: Nexo Jornal ​