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Liberdade de cátedra e pluralismo do ensino

Onda de ódio se irradia para o meio universitário, denuncia artigo de procurador do MPT/CE

Publicado: 31 Outubro, 2018 - 12h59

Escrito por: Francisco Gérson Marques de Lima*

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Gérson Marques é procurador regional do Ministério Público do Trabalho no Ceará

A onda que se instala no Brasil, de ódio e retrocesso nas liberdades públicas, tem se irradiado para a ambiência universitária. De fato, os reflexos das eleições presidenciais do 2º Turno para Presidente da República, em 2018, demonstraram a tendência de vilipendiar a livre manifestação do pensamento de estudantes e professores. A mais recente tentativa foi na UNB (dia 29), em que sujeitos vestidos de verde e amarelo tentaram ingressar para praticar atos de vandalismo por entenderem que o ensino na Instituição não pode ter caráter “comunista”.

Em Santa Catarina, uma deputada do PSL criou um “canal de denúncias” para monitorar as aulas na rede de ensino, a fim de combater ideias “político-partidárias ou ideológicas”. O canal orienta que os alunos gravem as aulas, filmem, façam anotações e as encaminhem como denúncias à deputada.

Às vésperas do 2º Turno eleitoral, houve uma série de batidas policiais em universidades, conduções coercitivas e ordens judiciais para retirada de cartazes e impedir palestras de professores, sob o pretexto de que ofendiam a legislação sobre propaganda eleitoral, ao se manifestarem contra o fascismo. Felizmente, o Supremo as cassou, em liminar concedida pela Min. Cármen Lúcia, na ADPF 548, promovida pela Procuradoria-Geral da República.

Obviamente, a propaganda eleitoral possui seus limites materiais e temporais, regidos pela legislação pertinente, que há de ser respeitada. Assim é o Estado de Direito.

Contudo, o controle das aulas ditas “ideológicas”, porque o professor ou palestrante está ministrando conteúdo “comunista”, “subversivo”, ou criticando posturas autoritárias, ditatoriais, fascistas, já é demais. Passa da simples proibição eleitoral e adquire ares de censura, mesmo que não reconhecida expressamente. Polícia que entra na Universidade para constranger professores; diretorias e pais de alunos que pressionam seus mestres para exigir conteúdos direcionados e acríticos (as “aulas chuchu”); deputados que fomentam o controle das aulas mediante denúncias de alunos por envio de vídeos gravados... Isto tudo é o que mais hediondo existe à liberdade de cátedra, à liberdade de expressão, à liberdade que a academia deve preservar, porque é da divergência de opiniões que a Ciência é construída.

O professor que se vê impedido de ministrar o conteúdo de forma crítica ou como alternativa à visão monocular tem privada sua liberdade de trabalho, a liberdade de compartilhar a riqueza do conhecimento.

Este mesmo pensamento manifestei em 2013, quando um professor da Faculdade de Direito da UFC, pastor evangélico, escreveu no site da instituição sua contrariedade ao casamento homoafetivo, o que gerou grande reação de grupos organizados contrários à tal opinião. Foi um rebuliço na Faculdade, com manifestantes despidos, cartazes nas mãos, faixas e batucadas, exigindo a cabeça do Professor, que defendia suas concepções morais, religiosas e jurídicas. Ali, rompendo o silêncio docente, defendi a liberdade de expressão na academia, que agonizava comprometida, opondo-me às manifestações odientas e à Administração da Universidade, que ouvia previamente o dito professor antes de instaurar procedimento disciplinar contra ele.

Da mesma forma e sob a mesma coerência, defendo aqui a liberdade da ciência, da doutrina e do ensino, a democracia das aulas, a pluralidade do conhecimento e de sua transmissão. Defendo a Educação.

Uma corrente que almeja calar a boca de quem pesquisa e faz ciência, de quem discorda das concepções unívocas das ruas, muitas vezes financiadas por grupos adeptos de determinada linha hermética de pensamento, fere o regime de liberdades. Basta alguém discordar da corrente ideológica e já recebe agressão, é violentado por multidões. Agressão verbal, manifestações públicas intimidatórias, que acossam quem possui opinião divergente. Isto é fascismo sim.

Não faz muito tempo, os discordantes das concepções predominantes eram os abolicionistas, que foram perseguidos e, muitos, assassinados porque divergiam do endema social e da legislação então vigente. Na ditadura militar, amordaçadas as gargantas, quem ousasse pronunciar alguma palavra proibida pelos militares era torturado, exilado, morto. Na Inquisição, de santidade duvidosa, toda concepção científica, religiosa ou moral tinha de ser exatamente a ditada pela Igreja Católica, sob pena de ser acesa a fogueira que consumiria os incautos. E assim perdemos grandes inteligências, cientistas e ideias.

Ícones do pensamento humano foram sacrificados por defenderem ideias não compreendidas pela obtusa mente da sociedade: Sócrates, Sêneca, Galileu Galilei, Joana D’Arc, Giordano Bruno. A simples leitura de certas obras foram proibidas por longos anos, nos quais não pudemos nos abeberar dos conhecimentos de Giordano Bruno, Nicolau Maquiavel, Voltaire, Erasmo de Roterdã, John Locke, Berkeley, Denis Diderot, Blaise Pascal, Thomas Hobbes, René Descartes, Rousseau, Montesquieu, David Hume ou Immanuel Kant, Pascal, Dante de Alighieri (de cuja obra a Igreja Católica retirou a noção de inferno), Descartes, Jean-Jacques Rousseau... Lê-las poderia levar à morte! Uma época obscura, de sombras, que ficou conhecida como a Idade das Trevas, que perdurou por quase mil anos. Perdemos mil anos de evolução, graças à intolerância, ao padrão obtuso.

O que caracteriza a Universidade é, justamente, a diversidade, a pluralidade. A academia não foi feita para um pensamento só. Ela precisa da liberdade de expressão. O que não se pode admitir são os atos de força para calar a voz dos pensadores, sejam eles quais forem. As coações, mesmo públicas ou disfarçadas de ordens legalistas, ou mesmo de falsos humanismos, falsos moralismos, são temerárias e, por si sós, já ofendem outros direitos igualmente consagrados pela Constituição e igualmente humanos. O que para uns possa soar como ensino satanizado, porque confronte diretamente seus pontos de vista, para outros é manifestação da liberdade religiosa ou expressão da liberdade científica, consagradas, ambas, como direitos fundamentais.

Neste sentido é que a mesma Constituição que, acertadamente, veda as práticas preconceituosas, assegura a "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber" (art. 206-II, CF). Referido dispositivo prevê, também, “III – o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, todos como princípios estruturantes da Educação brasileira.

E o lugar público, mais legítimo de expressão do pensamento dos docentes, são as salas de aula, os auditórios, as livrarias, os canteiros, os sites da Instituição a que pertencem, os espaços públicos, em seu conceito político, por meio da palavra escrita ou verbal. Ou será que, nestes espaços, só é admissível publicar uma única vertente de pensamento, o mais conveniente?

Não dá para concordar com os atos que oprimem e sufocam as opiniões manifestadas no seio da academia, um dos poucos redutos destinados à liberdade de pensamento. Ao invés de mordaças, vamos ao debate, com respeito e amadurecimento para ouvir e rebater.

O mesmo argumento utilizado para calar a voz de um professor, que diverge da interpretação dada por uma autoridade ou da opinião irredutível de grupos organizados, pode ser utilizado noutra oportunidade, para fins maleficentes, como de fato o foram, por regimes de força, as ditaduras que remetiam os divergentes ao calabouço. Na essência procedimental, o raciocínio e a justificativa são, praticamente, os mesmos, servindo para o bem e para o mal. É extremamente preocupante a imposição de pontos de vista pela violência, pela intimidação, pela ameaça, pela coerção, pelo ataque virulento, pela covardia das armas. Esta conduta pode justificar e levar a outras violências, porquanto a verdade é construída todos os dias, não havendo realidades prontas e acabadas. É com supedâneo em atos de violência e intolerância a outras concepções que existem os grupos de perseguição a etnias específicas e a outras diferenças sociais: neonazistas, Ku klux klan, IKA, radicais e extremistas em geral. São grupos que não aceitam sequer discutir suas ideias pré-formadas, sejam elas certas ou erradas, não importa. Ora, a convivência e a troca de experiência dos grupos sociais é que tornam a vida em sociedade, no mínimo, suportável.

Pela paz e pela liberdade, em pleno século XXI, na defesa dos direitos constitucionais, a academia não irá se calar, como efetivamente não se calou nos períodos mais trevosos da humanidade. Embora a “noite seja escura e cheia de horrores”, sempre há uma chama que resiste até o nascer do sol. 

*Professor da Universidade Federal do Ceará, Doutor em Direito