Estabilidade é uma proteção para a sociedade, não para os servidores públicos
Constatação é da professora de Sociologia da UFBA, Graça Druck. Dona da fala mais contundente do 1º seminário da Jornada do Serviço Público, ela convocou a resistência à PEC da Reforma Administrativa
Publicado: 14 Setembro, 2020 - 09h57
Escrito por: Déborah Lima
Num momento em que o número de mortos pelo Covid-19 no Brasil supera os 131 mil e a pandemia comprovou a necessidade social dos serviços públicos, particularmente do Sistema Único de Saúde (SUS), os trabalhadores que fazem esses serviços funcionarem são vítimas de uma nova campanha nacional de ataques, desta vez articulada pelo desgoverno do presidente de ultradireita Jair Bolsonaro.
Reverberando o discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, que reflete os interesses do capital nacional e internacional, os grandes veículos de comunicação apontam o tamanho da folha de pagamento dos servidores como responsável por um eventual “colapso” na prestação de serviços e no orçamento público.
Coberta de falácias, a narrativa da grande mídia pretende justificar o envio da PEC da Reforma Administrativa ao Congresso, no dia 3 de setembro. A primeira enganação do governo e da imprensa sobre a Proposta de Emenda à Constituição nº 32 de 2020 foi exposta por Graça Druck, professora de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e dona de uma das falas mais contundentes do seminário virtual “Os mitos e as verdades sobre servidores e serviços públicos, empresas públicas, estatais e seus trabalhadores”, realizado no dia 10 de setembro.
Mudanças já atingem os atuais servidores
A primeira balela da Reforma Administrativa, segundo Graça Druck, é a versão oficial de que as mudanças não atingiriam os atuais servidores, estratégia encontrada pelo governo para tentar neutralizar a resistência dos trabalhadores do serviço público à tramitação da PEC na Câmara e no Senado. “A primeira falácia é quando diz que não atinge os atuais servidores públicos, que já foram e vêm sendo atingidos por um conjunto de mudanças, desde a Reforma da Previdência, que aumentou as contribuições previdenciárias, implicando redução salarial”, lembrou.
A professora de Sociologia citou a aprovação da Lei de ajuda aos estados e municípios, que condicionou o socorro do governo federal ao congelamento dos salários dos servidores, das carreiras e dos concursos públicos até o final de 2021. “Isso já está em vigor e já atingiu os servidores”, avaliou.
Ela mencionou o Plano Mais Brasil, um conjunto de três PECs (186, 187 e 188) cujo objetivo fundamental é a redução dos gastos sociais, o enxugamento do Estado e a redefinição dos Fundos Públicos. A professora lembrou que uma dessas PECs – a Emergencial -, propõe a redução de 25% dos salários e da jornada de trabalho dos funcionários públicos. Some-se a isso Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos sociais por duas décadas.
“Na realidade, os servidores públicos já estão, de um lado com transformações em vigor, e de outro com um conjunto de medidas de reforma do Estado que estão para ser analisadas no Congresso Nacional e que, no seu texto, atingem diretamente os atuais servidores públicos também”, enfatizou.
Número modesto de trabalhadores e gastos com pessoal estáveis
Entre argumentos irrefutáveis, a professora da UFBA destacou os dados do documento “Gestão de pessoas e folhas de pagamento no setor público”, diagnóstico encomendado pelo governo brasileiro ao Banco Mundial. O estudo reconhece que o número de servidores no Brasil não é grande, como quer fazer crer o discurso oficial.
“Comparativamente em termos internacionais, o número é modesto, não há um excesso de servidores”, assinalou Graça Druck. Ela destacou que o documento do Banco Mundial também reconhece que, entre 1997 e 2018, as despesas com pessoal do governo federal se mantiveram relativamente estáveis, em termos de proporção do PIB.
Nenhuma indicação de colapso financeiro e muitas contradições
“A composição de gastos com pessoal se manteve estável nos últimos anos, portanto não tem nenhuma indicação de qualquer colapso financeiro orçamentário por conta do serviço público e nem de descontrole dos gastos como, de forma propositalmente equivocada, tem sido colocado pelo governo para justificar as reformas”, analisou.
A professora de Sociologia também apontou contradições e incongruências na exposição de motivos da PEC 32. Assinado pelo ministro Paulo Guedes, o texto diz: “É importante registrar que a PEC ora apresentada não acarreta impacto orçamentário financeiro. No médio e no longo prazo, inclusive, poderá resultar na redução dos gastos obrigatórios, possibilitando o incremento nas taxas de investimento público no país”.
Despesas com pessoal sem impacto orçamentário
Na interpretação da professora da UFBA, o texto de apresentação da PEC coloca em xeque a própria justificativa da proposta, baseada numa suposta necessidade de redução de despesas com pessoal, sem a qual haveria um “duplo colapso” do serviço público. “Apesar de contar com uma força de trabalho profissional e altamente qualificada, a percepção do cidadão, corroborada por indicadores diversos, é de que o Estado ‘custa muito’, mas ‘entrega pouco’. É necessário evitar um ‘duplo colapso’ na prestação de serviços e no orçamento público”, diz a justificativa da PEC 32.
O registro da ausência do impacto orçamentário na exposição de motivos da PEC descredibiliza o discurso engendrado pelo governo e os meios de comunicação para legitimar as reformas. “Cai por terra o argumento que tem sido levantado do colapso das finanças por responsabilidade dos servidores públicos. Então, eu me pergunto: qual é o objetivo central das reformas e especialmente da Reforma Administrativa?”, questiona.
Fim da estabilidade é o eixo central
Respondendo à própria pergunta, a professora mostra que o eixo fundamental da Reforma Administrativa é o fim da estabilidade dos servidores. Ela assinala que esta não é a primeira vez que o direito à estabilidade é alvo de ataques midiáticos patrocinados por governos neoliberais. O último deles foi há 25 anos, durante a reforma do aparelho de Estado do governo do presidente tucano Fernando Henrique Cardoso (1995/2003).
“O fim da estabilidade dos servidores públicos não conseguiu efetivamente se implementar por uma série de razões, inclusive pela capacidade que os servidores públicos tiveram de resistir e lutar contra o fim da sua estabilidade”, recorda.
Cinco tipos de vínculos e a extinção dos estatutários
Graça explica que a PEC 32 propõe o fim do Regime Jurídico Único, a extinção dos servidores estatutários, a criação do chamado “Regime Jurídico de Pessoas” - com cinco tipos de vínculos, muitos deles precários -, e a redução dos concursos públicos.
“Nos dados do próprio documento do Banco Mundial e da exposição de motivos (da PEC 32) diz que há uma previsão de que 26% dos atuais servidores se aposentem até 2022. Ora, se não vai ter concurso, há uma perda desses servidores. A previsão até 2030 é que 40% dos servidores irão se aposentar. Então, aos poucos, há esse processo de extinção dos servidores públicos estatutários”, chama atenção.
Reforma cria os “sem concurso”
A professora de Sociologia ressalta que a proposta do “Regime Jurídico de Pessoas” cria uma segunda categoria de trabalhadores: os “sem concurso”. “Na proposta desses cinco tipos de vínculos, tem os que mantêm o concurso - que são aqueles por prazo indeterminado, que chamam cargo típico Estado, com contrato de experiência -, e os sem concurso - que vão ser utilizados processos seletivos simplificados, que são os vínculos por prazo determinado, os cargos de liderança e assessoramento”, salienta.
Às duas anteriores, Graça acrescenta uma terceira categoria: os terceirizados - sem concurso e sem estabilidade. “A terceirização também tá lá dentro da Reforma com os chamados ‘instrumentos de cooperação’. É a contratação de parcerias, de instituições, que está espelhada na experiência das Organizações Sociais (OS) criadas com a reforma do Fernando Henrique e do Bresser Pereira”, sublinhou.
Graça acrescentou que a terceirização tem sido uma porta aberta para a corrupção no serviço público. “A Lei das OSs, de 1998, virou uma epidemia no serviço público, especialmente na área de saúde, na gestão de hospitais públicos, geridos hoje por OSs, que tem sido elemento de denúncia de corrupção, desvio de recursos, de não cumprimento inclusive da sua própria legislação”, denuncia.
A necessidade social da estabilidade
A professora da UFBA foca na importância da estabilidade dos concursos públicos enquanto avanço promovido pela Constituição de 1988 na construção de um Estado democrático e social. “Os concursos são a forma mais democrática e moderna de ingresso na carreira pública. Eles comprovam qualificação, conhecimento e capacidade de forma impessoal. Rompem com o coronelismo, com a indicação de políticos”.
Para exemplificar, ela cita o caso do município do Rio de Janeiro, onde o prefeito Marcelo Crivella arregimentou um grupo de trogloditas travestidos de “servidores” para intimidar e agredir profissionais de imprensa e usuários dos serviços públicos municipais que criticassem o trabalho do chefe do Executivo.
Milícias do Crivella comprovam: concurso é essencial
“O que acontece hoje no Rio de Janeiro com as milícias do prefeito, verdadeiros guarda costas para ‘defender’ a prefeitura, essa situação tende a virar uma regressão muito grande - inclusive na forma de constituição do Estado -, com a indicação de funcionários que melhor atendem a lógica do político, do prefeito, do Poder de plantão. Então, a estabilidade é uma necessidade imprescindível dos servidores públicos”, evidencia.
Graça Druck explica que os servidores concursados detentores de estabilidade não são empregados do governo, são servidores da sociedade e produtores de bens públicos. “Eles são agentes que executam as políticas públicas para a sociedade, são os produtores dos bens públicos, dos bens coletivos. São, portanto, servidores da sociedade e para cumprirem essa função e garantirem a sua isenção, enquanto agentes produtores desses serviços, precisam ser estáveis. É uma condição fundamental”, insiste.
Estabilidade no serviço público é proteção para a sociedade
A professora pontua que o direito protege os servidores da perseguição política dos gestores de plantão, que mudam a cada quatro anos, e da precarização das relações de trabalho, prática comum na contratação de não concursados. No entanto, Graça Druck enfatiza que a finalidade fundamental da estabilidade é proteger a sociedade.
“Os servidores não podem ficar à mercê das chefias, à mercê da perseguição política, e nem de contratos provisórios e precários de trabalho porque são esses contratos que ‘entregam pouco’ à sociedade. Condições precárias de trabalho não permitem que eles ‘entreguem mais’. Então, a estabilidade é uma proteção para a sociedade e não para a categoria dos servidores públicos. Essa é uma questão fundamental”, provoca, em resposta ao texto da justificativa da PEC 32.
Insubordinação ao capital
As falas do ministro-banqueiro Paulo Guedes em referência aos servidores – classificados como “parasitas”, “inimigos”, “mercenários”, “saqueadores”, entre outras definições indecorosas – revelam o sentimento nutrido e propagado pelo governo Bolsonaro em relação aos trabalhadores do serviço público.
Mais que assédio institucional como prática de governo, a postura de Guedes desnuda a estratégia contida na narrativa difundida pelo Executivo para tentar destruir a reputação daqueles que - contra a lógica do capital e dos capitalistas -, ainda mantêm o Estado brasileiro funcionando.
“Os servidores públicos, diferentemente dos trabalhadores da iniciativa privada, não estão subordinados no plano direto à acumulação capitalista, a esse processo de concorrência do capitalismo, onde o trabalho do trabalhador do setor privado tá lá para gerar lucro para o capitalista. O servidor público não! Ele não tem esse objetivo. Ele não vai gerar lucro pra ninguém porque ele produz bens coletivos, os bens comuns necessários à sociedade brasileira”, salienta Graça Druck.
Fundamentalismo alimenta o ódio
O discurso do ministro da Economia de Bolsonaro prega claramente o ódio contra os servidores públicos e difunde na sociedade a ideia de que eles precisam ser destruídos. Nesta inversão de valores, os trabalhadores que cuidam da população são apontados pela narrativa do governo neofascista como "inimigos do povo" que devem ser execrados e exterminados.
“No Estado capitalista, de formato neoliberal, há um ódio aos servidores públicos que tem sido destilado por esse fundamentalismo neoliberal que existe neste país, agravado por um governo autoritário, de natureza neofascista, como é o governo Bolsonaro. É esse ódio que alimenta essa vontade de destruição”, protesta Graça Druck.
A professora atribui os ataques aos servidores ao fato de eles representarem um setor da sociedade que não pode ser apropriado pelo capital. “Os servidores públicos representam aquilo que é a contra tendência à exploração do trabalho e à acumulação de riqueza. Eles representam o segmento que o capital não pode se apropriar totalmente - mas é isso que quer -, porque o neoliberalismo faz isso: é uma tendência à mercantilização de tudo, da vida, da saúde, da educação, de absolutamente tudo”, pontua.
Ameaça ao Estado neoliberal e defesa do Estado social
O motivo central das investidas contra os servidores, explica Graça, é a ameaça que os trabalhadores do setor público do Brasil representam à instalação do projeto neoliberal de Bolsonaro no país. “Os servidores públicos, enquanto segmento, enquanto trabalhadores que produzem para a sociedade - não para o mercado -, representam uma ameaça ao Estado neoliberal e, portanto, eles precisam ser ‘destruídos’. Por isso são qualificados como ‘parasitas’, ‘inimigos’, eles precisam ser ‘destruídos’, essa é a perspectiva (do governo)”, denuncia.
A professora de Sociologia da UFBA afirma que a defesa do Estado social deve ser a resposta dos servidores públicos brasileiros às reformas neoliberais no país. “A defesa dos bens comuns, dos bens públicos produzidos pelos serviços públicos em condições estáveis para os servidores públicos é uma defesa do Estado social, é uma defesa da democracia e é uma defesa contra tudo o que o neoliberalismo tem feito de destruição e que provocou a tragédia que nós já estávamos vivendo antes da pandemia e que foi agravada pela pandemia”, atesta.
Resistência é crucial
Graça Druck enfatiza que a resistência dos trabalhadores e trabalhadoras do serviço público é crucial para derrotar as reformas de Bolsonaro, entre elas a Administrativa. “Eu acho crucial a resistência que temos que ter frente a esse desmantelamento. A nossa existência, a nossa resiliência, a nossa permanência é crucial para que esse neoliberalismo fundamentalista não se torne absoluto na sociedade, destruindo, inclusive, os bens comuns públicos e as políticas sociais”, conclui.
Jornada em Defesa dos Serviços Públicos
O seminário virtual “Os mitos e as verdades sobre servidores e serviços públicos, empresas públicas, estatais e seus trabalhadores” integra o programa de atividades da Jornada Unitária em Defesa dos Serviços Públicos. Realizado virtualmente uma semana após a chegada da PEC 32 na Câmara dos Deputados, a atividade alcançou mais doze mil visualizações até o fechamento da matéria. Além de Graça Druck, as discussões contaram com a participação de José Celso Cardoso Jr., presidente do Sindicato dos Servidores do IPEA (Anfipea), Fausto Augusto Jr., diretor técnico do Dieese, e Regina Camargos, doutora em Ciências Políticas pela UFMG.
O segundo seminário virtual da Jornada está marcado para o dia 24 e discutirá “As privatizações, a desnacionalização do patrimônio público e das riquezas nacionais”. O debate será transmitido ao vivo, das 18 às 20h, pela Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal - Confetam/CUT (facebook.com/confetam).
Ato Nacional no dia 30
No dia 30, trabalhadores do serviço público municipal, estadual e federal; do Executivo, Legislativo e Judiciário; das empresas públicas e estatais unem forças no Ato Nacional em Defesa dos Servidores e dos Serviços Públicos. A atividade virtual será um “esquenta” para o Dia Nacional do Servidor Público, celebrado em 28 de outubro.
Organizada por entidades representativas dos servidores das três esferas de governo e dos três Poderes da República, a Jornada Unitária em Defesa dos Serviços Públicos foi lançada, no dia da apresentação da PEC 32 à Câmara, com o objetivo de unir forças para enfrentar a Reforma Administrativa de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes.